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Leitura do Verbo Pascal
O mistério da Encarnação numa leitura transcendental frisou a presença do divino em toda realidade humana, exceto no ato de pecar. Porque, no fundo, tal ação é a contradição do humano.
O mistério da Encarnação não se esgota no fato de o Verbo assumir a humanidade. Ele o fez em relação a uma humanidade concreta. E com isso, a maneira como ele a viveu torna-se fundamental para compreender-lhe o alcance.
A dialética fundamental, que comandou o modo humano e histórico do Verbo Encarnado, pode traduzir-se no binômio: morte e vida. Ela alcança no final da vida de Jesus sua expressão máxima na cruz e ressurreição. A morte e a ressurreição não foram fatos isolados, mas a estrutura fundamental de toda a vida.
A vida pública de Jesus, como nos narram os sinópticos, toda ela é comandada pela tensão morte e vida. Entre os muitos gestos de Jesus, três parecem mais significativos na expressão desse binômio central de sua vida: as curas, os exorcismos e a comunidade com os pecadores.
As curas são o encontro com a morte da doença até o caso extremo da morte física. De um lado, temos a morte configurada pela situação dos enfermos que procuram Jesus e dos parentes que recorrem a ele por ocasião da morte de alguém. Aí está claramente marcado o espaço da miséria, da fraqueza, da impotência humana, que encontra nessas situações-limite sua concretização mais expressiva.
Tanto mais evidente parece tal realidade quanto naqueles tempos a doença traduzia o mundo confuso do mal, do poder satânico, da desordem, de um lado, e, do outro, a impotência de o ser humano dominá-lo. A medicina era precária. Os conhecimentos das doenças incipientes. No caso de doenças de traços psicossomáticos, a interferência de poderes sobrenaturais ainda parecia mais decisiva.
Também nos nossos dias, com certo espanto, assistimos a cenas em que a doença assume essa conotação. Mas, em geral, são casos terminais ou de doenças para as quais não há ainda cura: câncer, aids avançada, etc.
Como o evangelho nos apresenta o confronto de Cristo com esta situação? Ora todo-poderoso, ora impotente, seja ele mesmo, sejam os apóstolos em seu nome. Nuns textos Jesus mostra sua força. Em outros aparece tanta a impotência dele como a dos apóstolos de fazer milagres.
É impressionante nos evangelhos o poder de cura de Jesus. Não se trata só das narrações concretas e pormenorizadas, como também de afirmações gerais de curas em massa. “À tarde, depois do pôr-do-sol, trouxeram-lhe todos os enfermos e possessos do demônio. A cidade inteira estava reunida diante da porta. Ele curou muitos doentes de enfermidades diversas e expulsou muitos demônios” (Mc 1, 32-34). Se retirarmos dos sinópticos as curas e os textos só inteligíveis em referência a elas, os evangelhos ficariam extremamente reduzidos. Inegável importância que eles atribuem a elas. Portanto, mesmo a crítica histórica mais radical não pôde deixar de reconhecer que, segundo o testemunho dos evangelhos, Jesus realizou ações que consideravam verdadeiros milagres. Negá-los seria uma violência enorme ao texto.
Em vez de perdermo-nos em discussões com os racionalistas que tentam medir as possibilidade clínicas das curas sem necessidade de nenhuma intervenção “milagrosa” de Jesus, tanto pela via da sugestão, quanto pela ignorância do diagnóstico, interessa-nos mais perguntar pelo significado teológico desse conjunto impressionante de curas. Antes de tudo, naquele tempo ninguém estranhava o milagre. Viviam num mundo em que o milagre não tinha nada dessa realidade hoje tão escandalosa para a consciência moderna. Era algo “sociologicamente freqüente” de modo que todo mundo o tinha por verdadeiro ( ). Em passagens do Antigo Testamento, aparece até a disputa entre Moisés e os sábios e feiticeiros do Egito na produção de milagres. O texto não tem nenhuma dificuldade de reconhecer que várias das ações milagrosas de Moisés, os magos também conseguiram fazer (Ex 7, 8-22).
Mas mais importante é a ligação que Jesus faz entre as curas e o Reino de Deus, entre as curas e a fé. Por isso, aqui aparece a razão porque Jesus e os apóstolos não conseguiam fazer curas em determinados momentos. Isso vai acontecer em Nazaré, como nos narra Marcos. “E não pôde fazer ali nenhum milagre” (Mc 6, 5).. Acrescenta a razão dessa inibição do poder taumatúrgico de Jesus: “E ficou admirado com a falta de fé deles” (Mc 6, 6).
Portanto, a força do milagre não estava entregue a Jesus como uma energia que ele podia dispor quando quisesse. Mas de uma relação maior entre ele e o Reino, sendo o miraculado um sinal visibilizador dessa relação. E a fé pertence a essa relação.
Com isso, quer-se afastar qualquer traço aparentemente mágico do poder de cura de Jesus. Um mágico pode exercer seus poderes quando e como ele quiser. Ele o faz sobretudo diante da incredulidade das pessoas, para convencê-las de seu poder. Jesus faz exatamente o contrário. Faz milagre quando há fé. Via-se, por conseguinte, “condicionado” a determinadas situações. Elas parecem resumir-se no seguinte. Quando a ação de Jesus revelava a face de vida do Reino de Deus diante de uma pessoa com fé a cura se processava. Diante de incréus, como os nazarenos, ele não a realizava, não porque não o quisesse, mas porque não tinha mais o sentido de vida do Reino.
E por que na cura aparece esse sentido de vida? Salta aos olhos que a doença anunciava a proximidade da morte, especialmente naqueles tempos antigos. E a morte a manifestava realizada em si. Jesus veio anunciar-nos que essas situações humanas reais e a serem vividas por todos nós não significam a última realidade a respeito de nós. O projeto de Deus não é a doença, a morte. Esta pode vencer, mas provisoriamente. E esta vitória é palpável nesses casos de doença e morte. No momento, porém, que Jesus cura e ressuscita, ele anuncia o sentido último dessa realidade: a vida. Ele atualiza já aqui uma realidade que será a definitiva. Antecipa-a, evidentemente, ainda na forma precária terrestre, mas símbolo proléptico da forma definitiva e plena da ressurreição final. Na cura, acontece o anúncio de que o Senhor envia o seu espírito a todos os que esperam para que nele sejam recriados, e a face da terra renovada. (Sl 104, 30). Esta pequena renovação é o esboço, o ensaio da futura gigantesca transformação final. Tal manifestação está precisamente em ação no mistério da Encarnação prolongado na gesto curativo de Jesus.
Essa mesma reflexão vale para o exorcismo. Somente que aí aparece ainda mais claramente a dimensão vitoriosa do Reino sobre o mal. A Encarnação veio vencer o mal. Marcos nos apresenta um Jesus desdemonizador do mundo. Nisso ele nos revela dimensão fundamental do mistério de sua vinda ao mundo. Deus não se compraz numa realidade em que impere o Príncipe do Mal.
Os evangelhos nos pintam o demônio como um tirano. Uma mulher há dezoito anos tinha um espírito que a enfraquecia, andava encurvada e não podia se endireitar. Jesus a cura num dia de sábado. Diante da indignação do chefe da sinagoga, Jesus justificou seu ato: libertara uma filha de Abraão há dezoito anos prisioneira de Satanás. Todos os adversários ficaram envergonhados, e a multidão se alegrava com as obras maravilhosas que fazia (Lc 13, 11-17).
O domínio do demônio manifesta-se também na loucura. O geraseno é um caso típico de loucura furiosa. A descrição pictórica de Lucas não deixa dúvida do diagnóstico. Não é um demônio, mas uma legião que sai do endemoninhado. A vitória de Jesus sobre esse domínio do mal termina com cena comovente. Um homem vestido, em pleno juízo, pedindo para segui-lo (Lc 8, 26-39).
A prisão do demônio é sobretudo espiritual. De Maria de Mágdala foram expulsos sete demônios e depois ela põe-se no seguimento de Jesus junto com as outras mulheres (Lc 8,2). A vitória de Jesus transforma essa mulher numa seguidora. Será uma das testemunhas privilegiadas da ressurreição (Lc 24, 10). Irá anunciar aos apóstolos que Cristo vencera a morte (Jo 20, 11-18). Não poderia ter sido maior a vitória sobre o mal, sobre a força escravizadora do demônio.
O demônio é o ladrão da palavra. A imagem da semente caída na estrada é interpretada por Jesus como aquela que, depois de ouvida, vem Satanás e arrebata (Mc 4, 14). Noutra parábola, o Maligno é comparado com o inimigo que semeia o joio no campo plantado com boa semente de trigo (Mt 13, 24-30).
Em outro momento, o demônio é chamado de assassino (Jo 8, 44), pai da mentira (Jo 8, 44). Nem Jesus escapou de sua ação como o grande tentador (Mt 4, 1-11). Mais terrivelmente o diabo manifesta seu poder nas possessões (Mt 8, 16.28.33).
Diante desse quadro cultural, aparece claramente o significado libertador de Jesus quando expulsa os demônios. Num caso, a expulsão do demônio devolve a fala ao mudo (Mt 9, 32-33). Em outros momentos, os evangelhos falam de maneira genérica que ele exorcizava os endemoninhados (Mc 1, 32.34.39). Os Atos dos Apóstolos resumem de modo explícito esse gesto libertador de Jesus: "Ele andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com ele" (At 10, 38). Nessas poucas palavras, está resumido o significado profundo dessa luta de Jesus com o demônio.
Esse lado da Encarnação de Jesus revela sua prática libertadora. Ele a prolonga por meio dos apóstolos e discípulos, ao conceder-lhes o mesmo poder (Mc 3, 15; 16, 17). Os setenta e dois discípulos, depois de uma missão, voltaram "cheios de alegria dizendo: Senhor, até os demônios nos são submissos em teu Nome" (Lc 10, 17)! E ainda mais extraordinário é o fato de que já havia naquele tempo os missionários anônimos que também expulsavam demônios em nome de Jesus sem serem seus discípulos explícitos. Era o cristão anônimo de K. Rahner avant la lettre. E Jesus os aprova e proíbe os discípulos de impedirem-nos de continuar em tal tarefa, pois "ninguém há que faça milagres em meu nome e, logo depois, possa falar mal de mim. Aquele que não está contra nós está conosco" (Mc 9,39-40). A vitória de Jesus contra satanás atinge todas as pessoas que não se opõem a ele, mas praticam o bem.
Um terceiro e maravilhoso gesto de Jesus pela vida contra a morte atinge ainda mais diretamente a dimensão de pecado, de exclusão. Toda sociedade tem seu código de exclusão. O povo judeu do tempo de Jesus excluía de modo especial algumas doenças, como a lepra, algumas profissões como a de cobrador de impostos, algumas situações de pecado como a de adultério por parte da mulher e a condição social da raia miúda. Era o mundo da morte social.
Jesus, em extrema coerência com sua missão de vida, aproxima-se dessas pessoas num gesto de verdadeira ressurreição. Ao leproso cura, reintegrando-o na sociedade depois de apresentar-se ao sacerdote, fazendo a oferenda pela purificação como prescrevera Moisés (Mc 1, 42-44). À mulher surpreendida em adultério perdoa, desafiando a ira dos escribas e fariseus que a trouxeram aos pés de Jesus (Jo 8, 3-11).
Mas o mais extraordinário foi a convivência com a raia miúda e as refeições com os pecadores. O escândalo estava plantado. Os escribas e fariseus interrogam os discípulos de Jesus: “Por que ele come e bebe com cobradores de impostos e pecadores?” Jesus intromete-se na conversa e responde: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, e sim os enfermos. Não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2, 16-17).
Sabemos que na cultura judaica a refeição implicava um nível expressivo de acolhida, de intimidade. Jesus aceita tê-lo justamente com os pecadores ( ). Nisso revela o significado maior da Encarnação. A vida está no centro.
O ponto máximo da revelação do mistério da Encarnação se dá na morte e ressurreição. Aí Jesus mostra o destino final de sua vida. Une-se a todos os crucificados do mundo para dizer-lhes que ele os acompanha nesse modo de morte, que lhes manifesta o sentido último da morte na ressurreição.
Nessa morte, Jesus experimenta o abandono total. Os discípulos fogem. Poucos amigos, entre eles a mãe, estão a certa distância, absolutamente impotentes ao vê-lo entregue à força dos inimigos e da morte. E mais tremendo é o abandono de Deus Pai.
Nesse máximo de sofrimento, nenhum crucificado do mundo pode sentir-se desacompanhado, pois antes dele passou o Senhor da Vida pelo mesmo caminho e anunciou-o como prenúncio da vida, convidando-o a entregar-se nas mãos de Deus Pai.
A angústia e agonia de Jesus sem limites revela essa última luta de sua humanidade nas vascas da morte com os olhos da fé no amor do Pai. Nada permitia Jesus ver a vida senão a fé. Esta permaneceu acesa. E nisso se fez revelação para nós.
J.B.Libânio
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