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Leitura do Verbo transcendental
A leitura transcendental do mistério da Encarnação situa-nos diante da maravilhosa presença da Transcendência do Verbo de Deus no seio de nossa humanidade. O jubileu da Encarnação é recordar os dois mil anos do início de uma presença nova de Deus na nossa história. Surgem-nos imediatamente várias perguntas.
Os santos padres, ainda plantados na cronologia da Bíblia, que fazia remontar a criação do mundo e do ser humano a alguns poucos milhares de anos, se interrogavam perplexos: cur sero ( )? Por que o Verbo se fez carne tão tarde?
Imaginem se conhecessem os dados da astrofísica moderna, que faz recuar o big bang a 15 bilhões de anos atrás e o início da humanidade a uma faixa entre 1 ou 2 milhões de anos. Que maior espanto ainda teriam e com que muito mais razão exclamariam: cur sero?
A primeira admiração vem da datação do mistério da Encarnação. Teve ano, dia, mês, hora, instante em determinado lugar do mundo. Antes desse instante, o Verbo ainda não tinha habitado nossa tenda de maneira humana, depois dele marcou uma ligação radical com nossa humanidade para sempre.
A Encarnação revela o limite de Deus, ao assumir nossa história. Perturbou a compreensão do ser de Deus e da maneira de experimentá-lo que religiões e pensadores imaginavam. Mesmo após dois mil anos desse momento, ainda nos povoa a mente uma imagem de Deus que se choca violentamente com o mistério da Encarnação. Quanto mais conseguimos sair da humanidade, da carne, da história, do concreto, tanto mais pensamos nos aproximar de Deus. Para tanto, construímos ritos, liturgias, técnicas que viabilizem tal distanciamento. Hoje, com a invasão de tradições orientais pré-cristãs ou de tendências espiritualistas, reforça-se mais essa percepção de Deus.
O jubileu da Encarnação vem lembrar-nos a dimensão de carne, de história, de humanidade da presença de Deus. Traz-nos para dentro desse mundo para aí encontrarmos a presença atuante de Deus. O Verbo fazendo-se carne manifesta-nos a maneira como toda a Trindade quer relacionar-se conosco. Na humanidade do Filho ela tem seu ponto máximo de revelação. Onde está o Filho, está o Pai. “Quem me viu, viu o Pai”, diz Jesus a Filipe (Jo 14,8). Com a mesma certeza e verdade, poderia ter dito Jesus: Quem me viu, viu o Espírito. O verbo ver está posto para exprimir algo mais profundo que a simples visualização corpórea da humanidade de Jesus. Ver é experimentar. Ver é ir fundo na realidade. Ver é descer à intimidade da pessoa. Não é possível esse encontro com a humanidade de Jesus sem um mergulho na Trindade.
A Encarnação revela mais. Não é somente a humanidade de Jesus. Ele fez questão de prolongá-la na pessoa do pobre, do despido, do faminto, do sedento, do encarcerado, do doente (Mt 25, 35-40; 42-45). A sua humanidade deixou-se significar, tornar-se realidade de muitos outros sinais humanos. Aqui o mistério da Encarnação ainda nos abisma mais.
Se o Verbo ao fazer-se presente numa humanidade tão perfeita como a de Jesus já nos espanta, quanto mais ao escolher preferentemente identificar-se com o que há de mais humilde e desprezível da terra. De novo, a revelação entra na contramão da nossa cultura atual.
O nosso imaginário religioso criou lugares belíssimos para perceber a presença de Deus. Prefere os poderosos, as pessoas postas em dignidade para encarnar tal manifestação de Deus. Não dizem os sociólogos da religião que a estrutura fundamental do sagrado é o “fascinante” e o “atemorizante” ( ). Nada tão pouco fascinante e atemorizante do que o pobre, o desprezado desse mundo.
O pobre tanto na aparência quanto na posição na sociedade causa compaixão, dó, mas nunca fascínio. Nem mesmo medo, a não ser que ele deixa simplesmente de ser pobre e assume a atitude violenta de protesto. Apesar de um lugar comum relacionar violência e pobreza, como algo óbvio, a verdade dos fatos desmente tal vinculação direta.
Vejamos. Um estudo sociográfico indicava que um dos países em que a violência era praticamente desconhecida situava-se na África e era um dos mais pobres do mundo. E doutro lado, Washington, capital do país mais rico do mundo, é uma das cidades mais violentas. Sabemos, por experiência, que em muitas regiões e bairros pobres de nosso país não se conhece a violência.
Além disso, há uma terrível violência praticada pelos poderosos. São eles que fabricam armas, são eles que decretam guerra, são eles que organizam bombardeios, são eles que desenvolveram a bomba atômica, são eles que construíram os campos de concentração, são eles que pagam justiceiros, são eles que organizam exércitos e polícias. Nada disso é feito pelos pobres.
Quando bairros ou cidades pobres se vêem às voltas com a violência, uma pesquisa mais detalhada descobre a máfia da droga, o poder repressor envolvidos. De novo, não são propriamente os pobres.
E quando, porém, vemos pessoas das camadas pobres envolvidas em assaltos e furtos, e até adolescentes e crianças, uma análise mais detida descobre causas que ultrapassam o horizonte dos pobres. Há uma mídia montada sobre o jogo do desejo e necessidade ( ). Ela desperta desejos sempre maiores de consumo e de bens conspícuos, sofisticados. Em seguida, transforma-os em necessidade premente para que a pessoa se sinta reconhecida socialmente. Assim projeta um jovem calçando tênis nike como protótipo do jovem moderno, atual, valorizado. Açula, por isso, em todos os jovens o desejo de possui-lo. Mais: transforma-o em necessidade de reconhecimento social. Até aí muito bem.
Ora, os jovens que têm poder aquisitivo suficiente, compram-no, pagando o preço, não da mercadoria, mas da marca. O pobre não tem condições de fazê-lo. O único recurso para satisfazer essa necessidade premente, criada pela mídia, é recorrer ao roubo ou a pequenos assaltos para conseguir-se o dinheiro suficiente ou o próprio tênis arrancado dos pés de algum jovenzinho rico. Está plantada a violência. Não vem do coração do pobre. Vem do coração rico da mídia que injetou no coração pobre desejos consumistas sofisticados.
O pobre, em virtude de sua pobreza, não engendra nem medo, nem fascínio. Por isso, parece o menos indicado para simbolizar a Deus, ao sagrado. O sagrado impõe-se na nossa sociedade pela suntuosidade dos templos, pelo ouro dos vasos, pela beleza das vestes, pelo esplendor das liturgias, pela força dos cantos. Ou brota das ameaças tonitruantes de penas e condenações. Céu e inferno foram lugares privilegiados para a favorecer a experiência do sagrado.
Vem Jesus. Inverte todo esse quadro. Não escolhe o fulgor do templo de Jerusalém como símbolo e expressão de Deus, do sagrado. Uma vez, “Jesus saiu do Templo e ia embora, quando os discípulos se aproximaram a fim de chamar-lhe a atenção para as construções do Templo. Ele, porém, lhes disse: “Estais vendo tudo isso? Eu vos garanto que não ficará aqui pedra sobre pedra; tudo será destruído” (Mt 24, 1-2). E, de fato, não ficou pedra sobre pedra depois da destruição dos romanos no ano 70.
Esse sagrado desapareceu. Tal afirmação de Jesus tem um ensinamento que vai além do fatual. Mesmo que depois os seus seguidores construíram templos ainda mais majestosos que o de Jerusalém, a afirmação de Jesus não perdeu a validez. Eles não são nada mais que pedra sobre pedra. Agora, já chegou a hora, que Deus é adorado em “espirito e verdade” (Jo 4, 23-24).). E nesse momento aparece o escandaloso da revelação de Jesus.
Ele anuncia à samaritana esse novo tempo de adorar a Deus “em espírito e verdade” que é reconhecê-lo na fragilidade da humanidade de seu Filho. Só o Espírito é capaz de nos fazer captar no homem Jesus a transcendência do Verbo. “Ninguém pode dizer “Jesus é o Senhor” senão no Espírito Santo” (1 Cor 12, 3). O Espírito está profundamente ligado ao que Jesus ensinou. “O Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos trará à memória tudo quanto eu vos disse” (Jo 14, 26). Há um movimento intratrinitário entre o Verbo e o Espírito que se manifesta na história através dessa relação entre Jesus e o Espírito. O Espírito ouve e toma o que é de Jesus para revelar e comunicar aos discípulos. Por sua vez, Jesus aprende do Espírito, deixa-se mover por ele. Tanto Jesus como o Espírito são a verdade. Jesus falando do Espírito diz: “Ele é o Espírito da verdade” (Jo 14,17; 15, 26; 16, 13) e de si mesmo afirma o mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).
Para nós hoje esse nexo é evidente, natural e simples. Nada nos dificulta de percorrer o itinerário da humanidade de Jesus até a presença do Verbo divino pela força do Espírito. Pois a pessoa de Jesus se nos tornou familiar. Mas isso não significa que tenhamos compreendido em profundidade o alcance e as conseqüências desse trânsito. A humanidade de Jesus é considerada de modo muito abstrato e mitificado. Quando nos detemos em considerá-la nas sua crueza realista, aí a ilação se torna difícil.
Jesus dá um passo ainda maior e mais difícil. Prolonga sua humanidade para o pobre. Ele o faz re-presentante dela no sentido bem etimológico do termo. No pobre, ele se faz presente. Agora, retomando o fio da reflexão, podemos concluir: o jubileu da Encarnação só pode ser o jubileu dos pobres!
Por que o pobre é o lugar da Encarnação continuada do Verbo? A resposta pára na liberdade de Deus. Assim Deus o quis, assim o fez! Por isso, a pergunta mais pertinente é outra. Que significa, em termos de revelação do mistério da Encarnação, essa escolha de Deus?
Já não podemos pensar a presença do Divino entre nós separadamente da opção pelos pobres. Pois, o primeiro a fazer essa opção foi o próprio Deus. Toda experiência do verdadeiro Deus, revelado pela Encarnação do Verbo, passa pelo reconhecimento do lugar privilegiado do pobre como sua imagem.
Dessa maneira a Encarnação anuncia o mundo futuro apontando para uma realidade presente. Só assim fazemos jus à natureza do Reino de Deus. Se projetarmos a beatitude do pobre unicamente para o futuro, sucumbiremos facilmente à alienação política. Estaremos reforçando um sistema de injustiça e opressão, que a Encarnação condenou e subverteu. Se anunciarmos a superação da pobreza para esse mundo, estaríamos colocando o rico como modelo. Sucumbiríamos “à ilusão transcendental” que consiste em prometer e esperar para essa terra a realização plena de todas as necessidades e desejos humanos ( ). E contradiríamos à revelação. Então o que significa?
Uma primeira palavra é dirigida ao próprio pobre. Na sua pobreza, ele pode ter a absoluta certeza da predileção do amor de Deus, da Igreja enquanto se mantém fiel ao evangelho. Se, de um lado, o pobre sofre o desprezo do sistema, a carência de reconhecimento social, de outro, pode sentir-se reconhecido, amado, privilegiado por parte de Deus. Isso já lhe traz a redenção de sua autoimagem, de sua dignidade pessoal, mesmo quando parece vilipendiada pelos que o cercam. Não é pouco tal verdade.
Pessoas que não têm fé nem experiência alguma profunda de Deus podem pensar que isso não passa de balela, de discurso vazio, de palavra consoladora e alienante. Mas à medida que alguém acredita no amor de Deus e se aproxima de muitos pobres que o vivem, percebe a importância dessa revelação do mistério da Encarnação. Quantos pobres encontram em si uma força gigantesca para suportar e vencer situações extremamente difíceis na sua pobreza, apoiados nessa consciência da bênção, da predileção, da presença de Deus. O mistério da Encarnação do Verbo, que se colocou ao lado deles, lhes dá uma percepção de paz, de alegria que nenhuma riqueza do mundo é capaz de compensar.
Quando um pobre diz: só Deus se lembra de nós, só Deus pode ajudar-nos, só Deus está ao nosso lado nesse sofrimento, ele está a tematizar o mistério da Encarnação de maneira concreta. Antes mesmo da luta pela sua libertação sócio-política, que decorre da energia de tal experiência de Deus, esta já operou a maravilha da libertação da própria imagem, da própria dignidade, do próprio valor.
O mistério da Encarnação revela a alegria de um Deus estar junto dos menores desse mundo. Isso é absolutamente surpreendente. Até hoje. Como nos sentimos recompensados, prestigiados quando nos aproximamos de poderosos desse mundo! As fotografias pretendem perpetuar tal momento. Se as câmaras fotográficas pudessem documentar as visitas de Deus, como o fazem com as dos grandes da terra, nos mostrariam como sempre ao lado do pobre, em todos os momentos de dificuldade, de dor e de exclusão, está Deus.
Vejamos como Jesus retratou essa experiência de um modo singelo na parábola da dracma perdida. Uma mulher pobre perde seu dinheirinho. Expressão da penúria, da desolação. Varre a casa, procura-o sofregamente. Eis que o encontra. A moeda reencontrada é símbolo da presença de Deus. Fruto imediato: alegria, convite para celebrar! A parábola serve tanto para revelar a alegria de Deus como a da mulher. Deus se alegra - isto é, o reino se realiza - quando a mulher se alegra com o achado da moeda. Achar a moeda é saber que Deus está sempre ao lado em todas as buscas ( ).
O horizonte do mistério da Encarnação pode ser ampliado, mas sem nunca perder esse ponto fundamental interpretativo da proximidade de Deus nos pobres. Todo humano torna-se revelação do Divino. Toda realidade humana é assumida pelo Verbo. Dizendo de maneira negativa, tudo o que não for a negatividade do pecado, do egoísmo, da injustiça, participa da luz irradiante do Verbo. E mesmo o pecado, não a cometer, mas já cometido, cai sob essa luz sob a forma do perdão, da reconciliação.
O mistério da Encarnação abre-nos horizontes maravilhosos para a dimensão humana. Poderíamos pensar que labutamos como Sísifo nesse mundo passageiro, carregando as pedras até o topo da montanha para vê-las rolar lá em baixo. Em seguida, condenados a repetir o mesmo gesto indefinidamente. Não: não vivemos pela força do mistério da Encarnação o “mito de Sísifo”. Se por nossa força não conseguimos levar a pedra da história até o final com coragem, alegria, entusiasmo, podemos fazê-lo pela graça vitoriosa de Cristo.
Lá no início, não por um determinismo físico, mas por um ato de amor, Deus criador inscreveu no “big bang” a marca Cristo. Todas as realidades, anteriormente à nossa decisão, já vêm configuradas por ele. Paulo afirmou-o com enorme clareza: “ Nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: tronos, dominações, principados, potestades; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo subsiste nele” (Cl 1, 16s). Vamos pensar mais fundo.
Deus constitui o mundo na sua autonomia. Ao criá-lo, retira-se para que ele possa desenvolver-se no jogo de suas causalidades físicas. Nelas ele tem sua autonomia. Deus não manterá com ele nenhuma relação causal física, interferindo a seu bel prazer no jogo de suas leis. No entanto, mantém uma relação com ele. É sempre sua criatura. A. Gesché, ao tratar desse assunto, diz que Deus, como Causa, “faz que as coisas se façam como elas se fazem” ( ). Ele não cria as coisas sem mais nem também há uma autocriação delas. Cria-as respeitando-lhes a autonomia interna. Isso significa que as coisas gozam de uma causalidade própria, interna, que envolve leis imanentes, processos de autorregulação, invenção. A matéria existe pela força do projeto criativo de Deus. Por isso, pode evolver em direção à humanidade consciente e livre. Eis o princípio antrópico, que a ciência pode descobrir com suas luzes ( ). É a convergência maravilhosa dos fatores que regem o gigantesco cosmos a caminho da vida e da vida consciente. O mistério da Encarnação diz mais. Essa humanidade avança até o momento esplendoroso da Encarnação do Verbo. Portanto, já lá dentro de todo esse processo evolutivo está em forma evolvente a presença desse mistério. Tudo tem a ver com a Encarnação. E a Encarnação tem a ver com tudo.
Essa relação se estabelece num duplo nível. No nível ontológico, ela antecede nossas decisões, nossa liberdade. Faz essa liberdade possível. Ser livre é poder responder a esse mistério. É uma liberdade radicalmente configurada pela Encarnação ( ). No entanto, tal configuração não nega a autonomia da liberdade. Num movimento oposto à sua profunda natureza, ela pode, sustentada por essa própria estrutura ontológica crística, negar tal tendência. Nega-se a si mesma. Contradição radical possível por um decisão nossa.
As conseqüências são sérias. Entrar na maré montante do processo que nos conduz à liberdade e consciência em sintonia com a Encarnação, mesmo que expressa em gestos e palavras, em ações e atitudes, não necessariamente explícitos, significa viver a dimensão da Encarnação no nosso dia-a-dia. Opor-se a esse mistério é uma dupla violência. Contra a estrutura mais profunda de nosso ser e contra a finalização última do projeto de Deus. Não se trata de um projeto definido em seus pormenores, em todas as suas contingências e conjunturas, porque estão em jogo tanto as leis da indeterminação de Heisenberg quanto os movimentos imprevisíveis da liberdade humana. Só uma coisa já está definida. A vitória final da graça de Cristo.
Podemos perder ainda muitas batalhas. São as contingências da física e as variações da liberdade. Mas a guerra já está ganha: É o mistério da Encarnação realizado até a plenitude da ressurreição. Com isso, damos o passo para a segunda leitura do jubileu da Encarnação
J.B.Libânio
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