|
Solenidade da Imaculada Conceição
1. Nas actuais circunstâncias – pessoais e colectivas, eclesiais até – poderíamos continuar, como no trecho do Génesis, há pouco escutado: “Não fui eu, foi a mulher; não fui eu, foi a serpente…”. Todos temos consciência dum mal que nos precede e extravasa, ou reciprocamente atinge. Não somos o que gostaríamos de ser, nem suportamos o que somos, só por nós.
Dificilmente escutamos um noticiário ou lemos uma análise da situação que não pareçam um “capítulo de culpas”, sobretudo alheias. Estranhamente, porém, fica-nos um resto, quase um depósito, difícil de digerir, qual remorso ou mal-estar: queiramos ou não, estamos sempre implicados. Um atavismo pesado, quase enjoativo, permanece e dói.
Sabemos como alguma modernidade nos tentou apaziguar disso mesmo, atribuindo-o a alegadas doutrinas de submissão ou alienação. Sabemos como se sucederam propostas de emancipação individual ou geral, insistentes no contrário, ou seja, na irresponsabilidade em relação aos outros e, ainda mais, a um grande “outro”, que só poderia ser fantasmagórico ou tirano…
Sabemos. Sabemos e sofremos tudo isto, por consideráveis “razões”, até certo ponto. Mas a questão permanece: - Porque nos sentimos tão pouco à vontade, quando um Outro, realmente outro, nos procura e lhe ouvimos o rumor dos passos no jardim? Porque alienamos – agora sim! – a resposta que lhe havíamos de dar por nós, mesmo que ainda renitentes da culpa e da sincera confissão?
Realmente, tanto tempo a somar desculpas aumentou-nos muito o seu peso mal descarregado. Nunca se agigantaram como hoje as culpas alheias e nunca se assumiram tão pouco as próprias. Com o perigo de dar ainda mais razão à antiga sentença do “quem não vive como pensa acaba por pensar como vive”.
Alguma coisa sobra, ainda assim, de prévio e subjacente, que não nos deixará completamente descansados, agora ou depois.
Foi deste realíssimo sentimento que a teologia concluiu o “pecado original”, mesmo antes de o designar assim. Não: do mais íntimo sabemos que não nascemos para remorsos sem nome, nem para eternas desculpas. Tudo nos grita, do mais fundo de nós mesmos, que fomos criados para mais e melhor, nós e o mundo que arrastamos, para bem ou para mal.
Os primeiros traços com que a humanidade se ilustrou nas paredes das antigas cavernas devolviam já à natureza uma cor e um movimento que ultrapassavam a rudeza com que a sofriam e lhe auguravam maior conveniência. Os filósofos ordenaram depois o que aparecia contraditório ou confuso. A poesia e as artes movem-se sempre do que é para o que pode ser - ou poderia ter sido, não fora um não sei quê, tão nebuloso como real.
Culpas pessoais, certamente. Mas sobre um fundo que alguma vez começou, originalmente negativo. E assim demoradamente estávamos.
2. Mais vale, como realmente valeu, o incansável projecto divino. O trecho da Carta aos Efésios, também ouvido, inultrapassável na clareza do cristianismo inicial, cantava-nos há pouco: “Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, […] n’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença”. Sabia o autor deste hino, confessamo-lo agora todos nós: a nossa verdade está aí mesmo, no sonho em que Deus nos sonhou, “na sua presença” e não fugidos ou escondidos d’Ele. Na verdade, como perguntava um outro autor do século I: “ – Que mundo poderia acolher um desertor de Deus? […] - Em que lugar, portanto, poderia alguém refugiar-se para escapar Àquele que tudo abrange?” (S. Clemente de Roma, Carta aos Coríntios).
Reconheçamos então, reconheçamos e confessemos, sem hesitar nas palavras recebidas da tradição eclesial, tão conformes, aliás, com o sentimento universal: não estamos, só por nós não estamos, como Deus nos quer; estamos, em Cristo estaremos, onde Deus nos espera, como “filhos no Filho” e nova criação realizada. “Santos e irrepreensíveis”, por acção da graça restauradora e plenificante. Finalmente assim, como em Maria Imaculada começou a ser, em função do Filho que teria.
E não nos desculpemos; mas, sofrendo o que mal herdámos e infelizmente arrastamos, abramo-nos à graça que nos refaz agora. Atrevamo-nos até a cantar, mas neste sentido apenas, a arriscada estrofe do precónio pascal: “Oh necessário pecado de Adão, que foi destruído pela morte de Cristo! Oh ditosa culpa, que nos mereceu tão grande Redentor!”.
Como isto foi e como começou, sabemo-lo também; por isso mesmo o celebramos hoje, na Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal. Foi na terra que estas coisas aconteceram, a partir do Céu. Não podia ser doutro modo, pois o “pó da terra” é a nossa matéria comum.
Na terra – que devia ser jardim – fomos procurados um dia, aí mesmo nos escondendo dum Deus que temíamos, porque não amávamos, antes o tendo por concorrente da nossa pseudo-liberdade. Na terra, na bendita terra de Nazaré da Galileia, Deus nos voltou a procurar, n’Aquela jovem que trazia em si a plena juventude do mundo, infinitamente capacitada para acolher a nova criação, de que era também o primeiro fruto.
Soa assim, na magnífica narração de São Lucas, tão poética para ser ainda mais verdadeira: “Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: ‘Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo!’”. Plenitude de graça significa totalidade divina e divinizante, acolhida e consentida, como no coração de Maria, assim mesmo “imaculada”. Aí sim e só aí, pôde nascer o homem novo: Jesus, Filho de Maria, o homem novo nascido na nova terra que Maria concentrava.
E, sem desculpas mal adiantadas, existe por fim um coração coincidente: “Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. Por Maria, Deus pôde dizer-se no mundo, no Verbo Incarnado, em que finalmente nos ouvimos e reencontramos. N’Ele, o Sol radioso de que Maria foi aurora, em imaculada conceição.
3. Deixemo-nos recriar também, amados irmãos e irmãs, pois a graça original de Maria é ainda a graça baptismal dos crentes. E retomemos o trecho da Carta aos Efésios, com especial incidência nos que a seguir serão ordenados diáconos: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que […] n’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença”.
A palavra-chave é agora “caridade”. A caridade de Maria, a “cheia de graça” foi total, que assim a recebeu e manteve. Caridade total e em benefício de todos, pois só assim poderia nascer Aquele que reinaria “sem fim”. Nada disto seria abarcável pela simples compreensão duma jovem nazarena; mas tudo seria correspondido por um coração “imaculado” e isento de quanto de Deus não fosse.
Então tudo começava no Coração Imaculado de Maria. Agora tudo continuará também, caríssimos ordinandos, no vosso coração entregue a Deus, para serviço humilde do próximo. Continuam a ser realidades imensas, da pura ordem da graça; mas continuam a passar por corações humanos, como os vossos, disponíveis para a recriação de todas as coisas em Cristo. Agradecei-as e cumpri-as.
- E que havemos nós de esperar do diaconado na Diocese do Porto, como na Igreja em geral? Certamente, não colmatará a falta de sacerdotes, que teremos de resolver ainda, com muita oração e empenho. Mas permitirá, com o tempo, recentrar os presbíteros no que lhes é mais específico e tanto urge, sobretudo quanto à Eucaristia e à Reconciliação, de que só eles são ministros, bem como na santificação do Povo de Deus.
Para tal, é oportuníssima a corresponsabilização eclesial e a expansão do diaconado, cumprindo a indicação do Concílio, há quase meio século dada. - E “permanente” porquê? Porque permanente há-de ser a dimensão diaconal da Igreja, quer internamente, quer no serviço dos pobres de todas as pobrezas. É esta dimensão que o diaconado simboliza e activa, pela graça própria dum grau específico do sacramento da Ordem, este mesmo que ides receber.
Na comunidade cristã e nas vossas ocupações correntes, profissionais e sociais também, sereis sinais vivos e activos daquele Cristo que assim mesmo se definiu um dia e tão particularmente vos define agora. Caríssimos diáconos de aqui a pouco: Lede e relede sempre, muitas vezes pela vossa vida fora, estas palavras de Cristo que tão particularmente, tão sacramentalmente, vos caracterizam e hão-de caracterizar mais e mais: “… o que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve. […] Eu estou no meio de vós como aquele que serve [= como um diácono]” (Lc 22, 26-27).
Caríssimos: Se vos vou ordenar daqui a momentos é unicamente para que a Igreja do Porto possa ter em vós sinais vivos e activos desta atitude de Cristo. Para que pela vossa humildade, disponibilidade e serviço a todos, sobretudo aos pobres, as comunidades cristãs cresçam nesta dimensão essencial em relação ao mundo. Nada mais, realmente, sem distracções nem derivas.
E, concluindo com palavras recentes do Papa Bento XVI, dirigidas precisamente aos diáconos, assim vos consagro e envio: “Não deixeis de prestar uma atenção particular às pessoas mental ou fisicamente doentes, às pessoas mais frágeis e aos mais pobres das vossas comunidades. Que a vossa caridade se faça criativa! […] Como Santo Estêvão, São Lourenço e São Vicente, diáconos e mártires, esforçai-vos por reconhecer e encontrar Cristo na Eucaristia e nos pobres. Este serviço do altar e da caridade levar-vos-á a amar o encontro com o Senhor presente no altar e nos pobres. Então estareis preparados para dar a vossa vida por Ele até à morte” (Africae Munus, nº 116).
- Rebrilhará em vós a luz de Cristo: essa mesma que em Maria foi alvor; essa mesma que em vós será serviço!
Santa Maria, Rogai por nós.
|